Um ser que participa do Todo e tem saudade do tempo que não foi, mas sabe que um dia nele irá se desmanchar, e flutuar. Porquanto participo da sopa divina.
Era realmente um sujeito interessante aquele cara de um metro e setenta de altura. Nunca conheci alguém como ele. Por favor, dispam-se de todo preconceito romântico: as pessoas se repetem. Já conheci nesta longa trajetória por este mundão afora muitas pessoas iguais, que se diferenciavam apenas quanto ao modo de sofrer. Mas ele não. Um homem único. Minha compreensão falha quando penso nesta singular figura, que um dia tive o prazer de conhecer. Gostaria de mostrá-lo em carne e osso algum dia desses para vocês. Como isso não me é possível, ao menos por enquanto, contento-me em descrevê-lo, mas em sendo ele um indivíduo que transcende a linguagem, resta-me não mais que tatear este fenômeno, como nestes desenhos animados em que se tacam tinta para reconhecer o homem invisível. Sim, um fenômeno, nada mais que um fenômeno. E digo mais.
Ou será que me calo, encerro o texto neste ponto, desligo o computador e vou embora. Temo sim dar seqüência à matéria de que aqui trato. Corro sério risco de que as palavras gravadas nesta tela caiam no mar raso das coisas sem sentido. Feitas estas ressalvas, prossigo em meu relato de meu prezado amigo. Devo insistir em certo termo por mim escolhido para denominá-lo, termo este que pode, em um primeiro momento, ser visto como confuso, vago, um mero rótulo desnecessário, mas, dado tempo ao tempo, o leitor verá que não há como escapar do predicado em questão. Após anos, anos e anos de reflexão suada, tenho como certeiro que melhor o caracteriza é: um fenomenólogo, e dos bons. Não sei se fenomenólogo de natureza ou de formação, mas garanto que era dotado de uma personalidade refinada e brilhante. Oras, não poderia ser diferente.
Olhar o mundo através dos óculos da fenomenologia é uma dádiva que o destino reservou a uma pequena fatia de privilegiados. No meu caso, só em raros momentos a fenomenologia desce sobre meu corpo. No caso dele, era o tempo todo. Acordava e já começava a ver fenômenos, e permanecia assim até o fim do dia, sem sinal de parar nem para tomar fôlego. Aliás, parecia que lhe cansava ser assim, impossível ler em sua vasta testa o menor sinal de esforço. Certa vez, enquanto dormia, uma bomba estourou em frente na porta de sua casa. Acordou assustado e pensou. “Que interessante, um fenômeno!” e voltou logo a dormir, enquanto isso sua mulher cozinhava em seu coração um rancor ardido e tenso “coisa de algum vadio desgraçado”.
Realmente, era um homem notável, de bem com a vida, cheio de disposição, leve, e no mais das coisas, com uma boa abertura ao mundo. Dominava como ninguém a difícil arte de se projetar no mundo, especialmente em jardins e paisagens vistas através da janela, de pequenas pontes de rio, ou igrejas antigas. Desvelava tudo o que via pela frente: músicas, engenharias, ferrolhos, com a facilidade de uma criança rabiscando um papel.
Diga-se de passagem que nunca intuiu nada, ou melhor, teve a última com doze anos de idade se não me engano. Depois disso, nunca mais. Percebia os fenômenos simplesmente. Devo salientar que descabe qualquer questionamento quanto à exterioridade ou à interioridade dos fenômenos por ele percebidos.
Nas deliciosas conversas que travamos pelos bares da vida, ele disse-me coisas que impressionaram profundamente meu intelecto, arremessando-me num mundo desconhecido e novo, paradoxalmente, o mesmo que sempre vivi e em que agora vivo. Era como se, num passe de mágica, eu começasse a entender as coisas a partir de um ângulo completamente insuposto, totalmente alheio a tudo o que antes conhecia, um ângulo em que tudo se desvelava incessantemente, compondo um quadro de sublime beleza. Parecia-me como se este meu amigo fosse dotado de algo de sagrado, de uma sintonia fina com a verdade. Com efeito, suas palavras passavam incólumes por toda a minha barreira crítica, por todo o meu preconceito, por toda a minha repulsa a toda essa intelectualidade fundamentada tão somente no frágil orgulho erudição vazia, e nos jargões filosóficos forjados para dar um verniz de novidade a velhas idéias. Até mesmo os mais corrosivos dos argumentos, aqueles de forte teor relativista, se envergonhavam diante da clareza de seu pensamento, e corriam se esconder no poço fundo de meu inconsciente. Nesses momentos a consciência era clareira limpa e fértil. E que prazer em escutá-lo! Algo como se estivesse embaixo de uma cachoeira de razão, luz e clareza. Ou como se bebesse diretamente da fonte que fecunda o universo. Tratava de coisas complexas com simplicidade e elegância, sem o entusiasmo doentio e passional dos críticos cujos corações são apretejados pelo excesso de bile no organismo.
Referiu-se, certa vez, enquanto tomávamos chá, na superstição muito comum de que existe um fora e um dentro. Argumentou que tal modo unilateral de pensamento pertencia a todos aqueles que acreditavam na esdrúxula fantasia de uma membrana semi-permeável que filtra o que vem de fora: o material coado seria então reorganizado por uma espécie núcleo racional que lhe imprimira sentido, para finalmente ser reconhecido pelo aparelho do entendimento.
Garanto para vocês que ele nunca imprimiu sentido a nada. Todos os sentidos por ele percebido eram intrínsecos aos fenômenos. Da mesma forma nunca soube a essência de nada, o que muito me causou espanto. Nem é necessário dizer que também nunca viu aparências. Mas o que mais me chamava à atenção era a sua boa adaptação ao mundo. Realmente impressionante.
Tinha vários gostos que valem a pena mencioná-los. Na escrita, por exemplo, preferia o uso da lógica aristotélica, uma questão de cortesia e modéstia. Em música, tinha um especial apreço por Free Jazz, pois que tal estilo, segundo ele, poria a música em estado de emergência, que é justamente onde Ser se manifesta: o ponto em que o futuro e o presente se tocam e entrelaçam. Ou pelo menos foi assim consegui compreender, pois futuro, passado, e presente eram, para ele, categorias que não exprimiam o sentido da temporalidade do ser, do tempo tal como percebido. O futuro, por vincular-se à percepção hipóteses possíveis, estaria de algum modo associado à imaginação, à poética. O passado estaria irremediavelmente ligado à memória, o que seria simples de entender, se não fosse o fato da memória, para ele, estar intrinsecamente misturada ao presente. Assim, o passado, do ponto de vista existencial, da primeira pessoa mesmo, seria, se quiséssemos acertar o alvo, não outra coisa senão o vigor-de-ter-sido.
Talvez não esteja sendo compreendido por algum leitor apressado. Se este é o caso, espero remediar agora toda e qualquer confusão. Estou ciente que o que vou fazer agora, a fim de clarificar esta figura, é uma manobra arriscada, pois o leitor agudo poderá encontrar nos trechos que se seguem um ar de fofoca, o que, com certeza, diminuiria o grau de estima pela pessoa do escritor, colocando-o, com razão, sob o signo da impostura. Porém, este não é o caso - deixemos a fofoca para as damas - e vamos aos fatos. Nada mais que fatos.
Alguém que vê o universo através dos óculos da fenomenologia tem um modo de vida específico que não pode ser negado. Ora, controlando adequadamente as variáveis do ambiente, podemos prever o comportamento do fenomenólogo, embora não possamos dizer o mesmo, infelizmente, em relação ao seu pensamento. Solte, por exemplo, um fenomenólogo em um museu bem aparelhado, espere um pouco, e observe sua reação. Alguns minutos depois ele já estará fitando as obras tranqüilamente, desvelando-lhes os sentidos. Um mês afastado de museus, jardins, livros e paisagens pitorescas, e o teremos sem apetite, abatido e sem umidade no olhar, apenas desvelando, cheio de angústia no peito, os azulejos de sua casa. Até hoje não sei de nenhum que permaneceu vivo por mais dois meses em estado de tão cruel privação. Já em Museus, quanta alegria! Seus olhos brilham, enche com gosto os pulmões de ar, sai de quadro em quadro desvelando as obras ao infinito, desdobrando o fenômeno até fazer saltar o sentido de seu interior.
Tem gente que pensa que todo fenomenólogo é filósofo. Ledo engano. Embora a grande maioria seja, esse é um abominável preconceito que deve ser de uma vez por todas abolido. Conheci dois que não trabalhavam como filósofos. Um deles era este meu amigo, o outro, um mestre de obras de Taguatinga, cidade periférica do Destrito Federal. Alcoólatra, era conhecido por todos como Goiano - fenomenólogo de primeiríssima, diga-se de passagem. Apesar da ocupação não convencional, denunciava sua inclinação através de certos hábitos típicos da classe, como pousar para fotos com um cigarrinho dependurado ao canto da boca, embora fosse Belmont.
Bom, deixemos as exceções à parte e peguemos características universais no que se refere à questão de gosto intelectual. Adoram física quântica, mas preferem antes discuti-la com poetas a discuti-la com físicos, pois estes últimos optam por uma visão de vida em terceira pessoa, o que, como todo mundo sabe é algo horroroso, vil, em suma, um pecado mortal. Pelo que se sabe encaram a quântica com a mesma naturalidade com que encaram o barulho de um grilo, ou a espumas que se formam quando as ondas quebram na praia. Mas o melhor de tudo é que, ao contrário de alguns mecanicistas, encaram este ramo da física sem fazer birra. Um deles me disse, certa vez, que esta teoria é um fenômeno que, através de uma teia de sentidos, desencadeia outros sentidos. Aliás, eu erro, “desencadeia” é demasiadamente mecanicista. Melhor seria: a quântica nada mais é um ponto de tensão numa rede de sentidos que propicia a manifestação de outros fenômenos.
Lembro que o fato deste meu amigo não ter nem conceitos nem definições dificultava um pouco nossa comunicação. Se por um acaso mencionei anteriormente que escutá-lo era um deleite, devo corrigir-me, pois, embora o tenha sido após um tempo de convívio, nem sempre este foi o caso. Em nossos primeiros encontros, eu queimava as pestanas para entender o que dizia. Sentindo em mim uma certa confusão, pedi-lhe, algumas vezes, que fosse mais claro em suas exposições, ao que ele sempre me respondia para relaxar, pois não é de primeira que se entende, por exemplo, a mímica sexual de um Louva-Deus. É aos poucos que se vai entrando no campo de sentido do inseto. E assim com tudo o que há no mundo. O segredo é mergulhar no conceito: “campo de sentido”. O sentido de uma frase não é a soma dos sentidos isolados de cada termo, mas se forma com a incorporação do estilo do autor, momento em que culmina com o todo dando sentido às partes e estas enriquecendo o sentido do todo, numa maravilhosa dialética que desisto de uma vez por todas de esclarecer.
Algumas vezes, lembro-me mesmo dele ter me acusado de mecanicista caduco, portador de uma lógica que não ultrapassava a idade média - o máximo que eu poderia chegar, pensando do modo como pensava, era em Kant. Confesso que esta acusação eram marteladas em meu pobre coração de estudante. E se hoje, se entendo um pouco de fenomenologia é graças a ele, que se não é tão singular assim, como pintei de início, ao menos é um cara legal, capaz de amar e ser amado. E quer mais que isso?