!> !> Pulmão Cabeludo
Um ser que participa do Todo e tem saudade do tempo que não foi, mas sabe que um dia nele irá se desmanchar, e flutuar. Porquanto participo da sopa divina.


























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Antigo blog do pulmao




























Pulmão Cabeludo
Alea jacus est
domingo, junho 29, 2003
Hoje fui ao teatro. A peça foi maravilhosa. Me falaram que era teatro gestual da escola francesa. Assim que soube que ia rolar o tal teatro, já fiquei imaginando que seria a melhor opção para a noite. Sempre é bom um teatro bem feito.

Um amigo meu passou em Casa. E zarpamos para o teatro. Erramos o caminho para chegar no Teatro Municipal. Aliás, erramos diversas vezes. Mas o pior foi o último erro. Estávamos a alguns metros do teatro e, não me pergunte que raciocínio nos levou a tal escolha, entramos numa bifucarção errada, que seguia o sentido oposto ao teatro (e todos sabíamos a direção do teatro). Foi a própria visão do inferno. Uma fila de carros que parecia não ter fim andava vagarosamente, e nem um lugarzinho para estacionar.

Nossos sentidos não queriam acreditar naquilo. Era carro que não acabava mais. Para nós, foi um choque: o teatro gestual era paixão popular! Mas assim que a fila foi prosseguindo, “bom senso”, aliado ao “desconfiômetro” descartou a hipótese de que havia no mundo tanta gente interessada em tal tipo de espetáculo. De fato. O mistério tinha sido solucionado. Uma quermesse, num lugar de Ribeirão chamado Sete Capelas, se descortinava em nossa frente.

Para piorar a situação, a menina que estava conosco no carro estava precisando com urgência ir ao banheiro, para tirar água do joelho. É a pior sensação do mundo, nada podia ser feito. Estava realmente desesperada. Assim, logo que saímos do tráfego em frente à quermesse, paramos em frente a um restaurante, para que ela fosse ser feliz no banheiro.

E ela foi ser feliz. Quando voltou, não pude nem reconhecê-la. Era uma nova mulher, de bem com a vida, disposta, com uma excitação infantil com relação à peça de teatro que iríamos assistir.

Então pela segunda vez pegamos a avenidona que desembocaria no teatro. Combinamos entre a gente que nada tinha acontecido. Decidimos, por comum acordo, que iríamos esquecer do que tinha ocorrido, e que, o que de fato havia acontecido fora que o motorista atrasou para passar em casa. Era passado melhor, mais confortante: qual o problema em adotá-lo como verdadeiro? Lógico que aproveitei a oportunidade para reclamar com o motorista pelo seu atraso.
- Porra meu, você é foda, agora a gente vai chegar atrasado no teatro.
- É que o Anselmo demorou no banho.
- Beleza.

Do pessoal que estava indo, eu era o único que não tinha convite. Além de não ter convite, eu também não tinha carro. Se o teatro estivesse lotado, eu iria ter que inventar alguma coisa para fazer. Como nós estávamos atrasados e o pessoal não tinha estacionado ainda, resolvi sair do carro e ir antes de todos ao teatro, para tentar garantir o meu bilhete.

Deu certo. Fui entrando e dei de cara uma figura estranha, o responsável por conduzir os atrasados aos acentos da peça, de modo a não incomodar nem o público nem os atores. Era um sujeito duns trinta anos de idade, gay assumido, cabelos amarelos, dessas figuras que nunca são vistas em outros lugares que não sejam portas de teatro ou vernissage de arte conceitual.

Ele aproximou-se de mim e falando bem baixinho para eu seguí-lo. Eu disse bem baixinho e com muita tranqüilidade que estava esperando uns amigos, que estavam estacionando o carro. Então ele ficou irrequieto, deu uma contorcidinha e respondeu-me que não poderia entrar depois que a peça já tivesse começado. A fim de acalmá-lo, fui tranqüilamente, como se nada estivesse acontecendo, comprar uma água. O sujeito do bar, um homem gordo de óculos, com aspecto amigável, entregou-me a água e disse-me, baixinho, com um certo de tom de satisfação, que eu poderia entrar na peça com a água. Achei curioso que ele me dissesse isso com tanta satisfação, parecia até orgulhoso, como se dissesse: “Aqui o pessoal confia em você, eu consegui fazer com que meus clientes possam tomar água enquanto assistem ao espetáculo”.

Entramos naquele ambiente escuro e avistei lá na frente às luzes do palco e as duas figuras que não pareciam seres humanos, mas uma nova concepção de ser humano, algo entre o desenho animado, teatro japonês e cinema impressionista alemão. Fiquei deslumbrado. Tudo me pareceu um sonho. Cheguei a sentir vertigens com aquela situação, sentindo uma espécie de emoção rara, um sentimento de beleza onírica. A melodia dos corpos, a música, o figurino, a iluminação, formavam algo de mágico. Sem dúvida, algo de mágico estava acontecendo ali na frente.

O espetáculo foi genial. Talvez uns dos melhores que eu assisti na vida. Considerava-me uma pessoa muito privilegiada por estar ali, sentado, consumindo uma arte perfeita. Quando o espetáculo acabou, senti que eu era uma pessoa melhor, que o mundo não era tão mal como parecia. O mundo oferecia-me suas delícias.

É difícil dizer a peça a que assisti era apenas uma peça de teatro. Os atores tinham uma sincronia perfeita dos corpos, como se seguissem uma partitura, e por muitas vezes o espetáculo se aproximava mais de uma dança contemporânea. A música era lindíssima, e ao mesmo tempo muito estranha, muito música bem moderna, dessas que fazem barulhos estranhos que causam na alma uma sensação de atmosfera irreal, um pouco parecida com algumas músicas de Nana Vasconcelos. A música fora elaborada apenas para a peça. Do início do projeto até a execução da obra foram dois anos. Os dois atores eram os próprios diretores.

Aquilo sim eram dois atores de verdade. Monstros da arte. Não havia uma gota de amadorismo sequer. Eram perfeitos. O domínio de seus corpos pode ser comparado o domínio que um grande músico tem de seu instrumento. O fruto de anos e anos e anos de treino. O ritmo da peça era magistral, absorvia por completo o espírito, gerando no espectador aquela simpatia infinita, base de tudo o que é bom. Alma diante de algo tão maravilhoso, entrega-se, e o tempo deixa de existir.

Como se não bastasse, o conteúdo era claro, limpo, evidente por si mesmo. Cheio de significado. De significado certo, justo. O uso da palavra na peça só iria empobrecê-la.

3:28 AM


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