Um ser que participa do Todo e tem saudade do tempo que não foi, mas sabe que um dia nele irá se desmanchar, e flutuar. Porquanto participo da sopa divina.
terça-feira, outubro 14, 2003 Barômetro espiritual
Uma idéia que faz um tempo que me acompanha e me inebria é a do Barômetro Espiritual, de um tal E.T. A. Hoffmann, romântico incurável, homem inteligentíssimo, grande escritor alemão, pai de família incomparável. Deparei-me com a idéia, pela primeira vez, através de uma referência que Baudelaire faz ao autor em um de seus livros: O Poema do Haxixe. Neste livro, em que Baudelaire oferece-nos reflexões agudíssimas sobre os efeitos do vinho e do Haxixe sobre o ser, há uma passagem em que o autor alude algumas das categorias de que Hoffmann fazia uso para melhor medir os ares do espírito. Entusiasmo musical; ironia ácida, insuportável a si mesmo. São algumas delas.
Fiquei fascinado com a idéia e pouco tempo depois já estava pensando em novas categorias, que pudessem medir com exatidão a minha atmosfera interior. Tomei, entretanto, certas ressalvas perante o instrumento, prevendo que seu abuso poderia descambar para algo um tanto taxativo.
As categorias criadas nunca podem ser categorias congeladas e duras. Mas flexíveis, borrachosas, como conceitos que se expandem, se contraem, e que se amoldam. Ou até mesmo categorias descartáveis ou recicláveis.
Para que estes conceitos compartilhem destas qualidades a melhor linguagem seria a linguagem poética, embora isso não seja regra. Categorias mais clássicas de medição devem participar do barômetro: tédio, angústia, raiva, medo. Porém, infelizmente elas não dão conta da especificidade, são muito genéricas. Reparem: “ironia ácida, insuportável a si mesmo” é muito mais pontual, tem o refinamento necessário para descrever o estado de espírito de uma criatura tão delicada quanto o autor.
Talvez tenha chegado a hora de abrir o jogo e falar algumas das categorias que criei. Embosteado. Felicidade colorida ao meio dia. Leveza marota. Sentimento de despedida de tudo. Alegria diabólica. Niilismo rancoroso. Estupidez bovinamente confortável. Sentimento esmagador do ridículo-libertador. Adesão fenomenológica. Fogo no rabo.
Recordo-me de certos estados estranhos que Baudelaire descreve, ou melhor, são sentimentos e não “estados de espírito”. Um deles é o gozo mórbido. Gozo mórbido?!Que porra é essa? Não me lembro de ter tido um, a não ser que tenha tido um, sem o saber.
Isso tudo me faz pensar qual a relação entre a linguagem e os sentimentos. Certo é que as coisas, depois de ganharem o nome, ficam mais reconhecíveis. A coisa, depois de nomeada, começa também a ganhar maior contorno, uma maior nitidez. Isso de forma geral. Veja bem: de forma geral. Que se não é tudo, também não é pouco. Não quero absolutices.