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Um ser que participa do Todo e tem saudade do tempo que não foi, mas sabe que um dia nele irá se desmanchar, e flutuar. Porquanto participo da sopa divina.


























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Pulmão Cabeludo
Alea jacus est
quinta-feira, maio 27, 2004
Não há pipoqueiros com menos de sessenta anos

Torrinha, 2004. Corpus Cristi. Na frente da Igreja matriz, um pipoqueiro rechonchudo, de nariz de bolacha. Poc. Poc. Dentro de seu carrinho, nos compartimentos de vidro, de lado pipoca salgada, do outro pipoca doce cor-de-rosa.

Neste dia a missa era diferente. Começava do lado de fora e só depois ia para o lado de dentro da Igreja. A comunidade católica estava toda ali. Eram homens sérios, de trajes sóbrios, camisa para dentro da calça. A maior parte das mulheres tinham o cabelo preso com grampos. A comunidade se distribuía em torno de um centro vazio, ocupado apenas pelo padre, por seus apetrechos, e alguns coroinhas.

Reinava por entre os homens um silêncio profundo, só algumas vezes interrompido por algum automóvel que passava. Um ar carregado, quase parado, congelava o tempo, abrindo novas dimensões do ser. Mesmo as crianças falavam baixinho, pressentido no romper do silêncio um crime grave. Um Deus fora torturado.

Por cima da noite uma enorme lua.

A Igreja se separa da praça por uma rua. Do outro lado da rua, sentado no banco da praça, uma turma de adolescentes. Destaca-se uma menina de olhos brilhantes e calças rasgadas. Eles assistiam em silêncio as pessoas em silêncio, sentados no encosto de um dos bancos da praça, ninguém comentava.

Súbito, chega um casal. Estavam atrasados. Um homem magro, paletó apertado, peito estufado com dignidade. Seus braços enlaçavam sua mulher na altura do pescoço. Usava bigode. Ela tinha os olhos negros como a noite, o pescoço fino, e um ar de quem sabe respeitar.

Nem toda a cidade participava do ritual. Descendo alguns passos, já era possível sentar em umas das mesas da lanchonete. Homens de bem a freqüentavam. Mas, por ora, as mesas estavam ocupadas por aqueles que não vão à missa: três turistas, quatro gays, sete drogados, e mais uma dúzia de jovens.

Habitualmente, o movimento do recinto aumentava depois da missa. As famílias se reuniam ali para apreciar o sabor do sanduíche, enquanto os pais contavam anedotas para seus filhos.

Quando criança, sorveteria com meu pai, aos domingos. Sempre pedia banana-split e minha irmã colegial. Em uma dessas ocasiões meu pai me contou como era Corpus Cristi na sua cidade natal. Uma cidade mineira cravada entre as montanhas e as nuvens.

A Sexta-Feira da Paixão era um dia muito triste, o mais triste dos dias. Não havia sorrisos. Extremo mal-gosto demonstrar qualquer forma de felicidade. Hoje as cidades não sabem mais o que é isso, não sabem sequer distinguir o bem do mal. Torrinha é uma ilha boiando num mar de pecados. É nova Arca de Noé. Em Torrinha, todo ovo de páscoa é de chocolate meio amargo.

Lá está o grupo de fiéis. As pessoas que estão mais próximas ao padre são as mais crentes, tiverem que chegar meia hora antes para ocupar o lugar privilegiado. Os que estão mais ao fundo, na parte mais exterior do círculo, enxergam com dificuldade. Ficam nas pontas dos pés e esticam os pescoços na tentativa de acompanhar, sobre a barreira de cabeças, o ritual que o padre conduz. Um pouco mais atrás está o pipoqueiro. Tem mais de sessenta e é o único alí presente que está sentado.

Melhor seria que estivesse em pé. Cautela, não se deve negar-lhe o direito de estar sentado - o carrinho de pipoca estava ali desde as cinco da tarde, muito antes de tudo começar. Estava a trabalho, não era seu dia de folga.

Mais precisamente tem sessenta e três anos de idade. Com vinte anos de idade vendia pipoca com o carrinho de seu pai. Aos vinte e sete abraçou a profissão. De lá para cá passou por tudo. O mais difícil foi perceber que sua profissão, durante todos esse anos, apenas decaiu. Cada vez entra menos dinheiro. Dez anos atrás, numa noite de domingo chuvosa, vendeu apenas dois saquinhos. Neste dia pensou em parar de uma vez, abandonar o carrinho. Mas olhou para a Igreja, para a praça, já não podia parar. Precisava de dinheiro, ainda que fosse pouco. E não sabia fazer outra coisa.

Dos outros pipoqueiros restaram apenas os ossos. E epitáfios sinistros no cemitério.

9:58 PM


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