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Um ser que participa do Todo e tem saudade do tempo que não foi, mas sabe que um dia nele irá se desmanchar, e flutuar. Porquanto participo da sopa divina.


























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Pulmão Cabeludo
Alea jacus est
quinta-feira, junho 17, 2004
Antes, uma a cada três mulheres era viúva-moça

Gosto de pensar em certas imagens que às vezes encontro pela vida. Tem uma que gosto muito, embora consciente que ela não reverbere na alma de um homem moderno, como hei de explicar mais adiante. Refiro-me a seguinte imagem ou cena: uma mulher dançando um samba fervoroso sobre a tumba de seu finado marido.

É, sem dúvida, uma imagem forte. Nem é necessário sabermos se ela está feliz ou triste, nem o motivo porque dança. Você entra no cemitério, vai até o túmulo do morto no qual quer prestar homenagem com suas lágrimas e encontra, no túmulo ao lado, uma mulher dançando um samba fervoroso sobre o túmulo de seu finado marido, desprezando ou ignorando sua presença. É uma cena em tanto.

Sinto nesta cena o cheiro do passado, um vago odor de naftalina. Evoca um tempo em que Tancredo Neves ainda era criança e jogava peão com Raul Pompéia no Ateneu. Era um tempo muito diferente do nosso, um tempo em que se econtrava pelas ruas a chamadas “viúvas moças”. Todo mundo que leu um pouco de Machado de Assis sabe que em sua época uma cada três mulheres eram viúvas moças.

Hoje em dia a viúva moça está, digamos, tão extinta quanto o panda ou um macaco-aranha, para a infelicidade dos mancebos em geral. Repito: para e infelicidade dos homens. Nenhuma mulher tão interessante quanto a viúva moça. O olhar esquivo e seguro. Suas magníficas espáduas, sua tez áurea como o marfim, a gentileza do busto, e ainda, a herança do marido.

Mas não é só. A viúva moça, meus amigos, tem algo de fatal. Algo de deliciosamente perigoso. A sombra do defunto sempre segue seus passos, imprimindo-lhe uma aura de tragédia que a acompanha sempre e sempre a acompanhará, como uma ferida aberta que jamais cicatrizará. Sua postura imponente exala um ar de quem nunca mais amará a ninguém, embora o fogo da volúpia e do desejo, ainda arda em seu coração de moça, e a faça, vez por outra, cometer loucuras.

Oh! Quantos gatunos de carteirinha já não perderam a cabeça por uma viúva moça! Nos bailes dúzias de vítimas ressentidas fitando seu decote. E ela, desimpedida, rica, luminosa, valsando com um lindo mancebo, como se fosse a rainha de antigas Franças. Ninguém é tão livre quanto ela.

Bom, lembro que uma tia minha foi uma viúva moça, chamava-se Ana. Seu marido morreu pouco tempo depois do casamento, deixando como herança apenas um vazio no peito e uma tristeza que perdurou durante anos. Morreu de cirrose o homem, ou foi pancreatíte? Não importa, foi o álcool mesmo. Poucas lembranças tenho dele, mas são boas. Levava eu e meus primos para pescarmos e nadarmos no Lago Azul, um clube cuja atração era um lago, aliás, a única atração. O clube era o lago. Mas naquela época nós não precisávamos mais do que um lago para ser feliz. Um lago, uma vara de bambu, e a alegria de sentir a fisgada de algum lambari.

E assim minha tia encontrou-se só, numa enorme casa. A casa tinha um um vasto quintal, com uma piscina, um limoeiro, e uma parte coberta. Passados alguns anos a casa da minha tia “viúva moça” ficou conhecida na cidade pelo furor e despudor de suas festas. Nós achávamos nossa tia meio loucona mesmo, de uma animação sem igual.

Certa vez, meu primo, tentando se vingar de seu irmão mais velho, dedurou-o para sua mãe, como um pequeno Cain:-“O Júlio tem revistas pornográficas.” Nisso, minha tia Ana, que estava por perto, antecipando a reação de minha outra tia, disse: “Hum! Que gostoso! Quero ver!” Assumiu nesse dia, para o espanto de todos, que gostava de homem, no sentido carnal da coisa. Eu e meu primo ficamos chocados com minha tia, com seu despudor, com sua inclinação ao pecado.

Tia Ana foi uma das mulheres mais livres de Penápolis na década de oitenta e começo de noventa. Nem preciso fechar os olhos para lembrar-me do seu riso, aliás, da sua gargalhada irreverente e contagiante. Talvez seja exagero, mas ela é uma das poucas pessoas a que verdadeiramente posso chamar de irreverente.

Tão extinto quanto as viúvas moças estão os irreverentes. Em toda a minha vida conheci, no máximo, umas três pessoas irreverentes, todos com mais de cinquenta. Não tenho nenhum amigo irreverente, nenhum colega irreverente, ninguém. O que se tem hoje é gente podre, gente descarada, sem vergonha na cara. Muito diferente de ser irreverente.



2:41 AM


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