Um ser que participa do Todo e tem saudade do tempo que não foi, mas sabe que um dia nele irá se desmanchar, e flutuar. Porquanto participo da sopa divina.
sábado, julho 17, 2004
Visitar a fazenda no interior do Mato Grosso do Sul é como visitar outro mundo.
Tínhamos acabado de jantar e o capataz discorria sobre cavalos. Eu só entendia metade do que ele falava, como se ele usasse outra linguagem.
E de fato usava outra linguagem. Seu vocabulário era mais vasto do que o meu, muito mais vasto, ao menos no que se refere aos fenômenos do campo. Era tão difícil entendê-lo quanto entender Heidegger ou qualquer economês. Já li o Grande Sertões Veredas e garanto que é bem mais fácil entender a linguagem de Guimarães do que a linguagem do capataz.
Ah, é bom reafirmar que o capataz não era tonto, e se comunicava apenas por monossílabos como em Vidas Secas. Era esperto e sabia um monte de palavras por causa de sua profissão. Em suma, seu vocabulário era adequado ao seu trabalho.
Algumas expressões:
"O boi está tocando de roda" "A égua está viciada" "A buchecha da vaca"
Ás vezes, porém, não era uma questão de linguagem, mas uma questão de percepção associada à linguagem. Explico-me: o reconhecimento do fenômeno está associado ao ato nomeá-lo. O peão percebia reconhecia o sentimento da vaca tão logo batia o olho no animal. Eu, do meu lado, sentado no cavalo, entendia aquilo com a profundidade com que ele entenderia um computador. As vacas, para mim, mal se diferenciavam pela cor. Talvez a única diferença visível era a ausência ou presença de chifres.
Ele conhecia cada boi ou vaca, os quais tinham para ele uma personalidade bem nítida, quase idiossincrática. Apontou-me um garrote, no meio de outros cem iguais a ele, e comentou orgulhoso que semana passada o bicho havia varado uma cerca e tinha ido para o pasto das vacas. E qual foi meu espanto, escutadar dele, durante o jantar, que japonês era tudo igual. E diga-se que, por japonês ele abarca o de chinês, o coreano, o esquimo. Japonês é tudo aquilo que tem olho puxado.
Descobri com ele que havia cavalos mais inteligentes do que outros, que não aprendiam nunca, eram burros mesmo. E essa estória de que Deus equilibra nas criaturas as qualidades é uma besteira. Há cavalos que são bons em quase tudo, e outros não prestam nem para puxar charrete. Pensei em argumentar que os cavalos que "não prestam" talvez fossem mais felizes, mas o bom senso não me permitiu fazer esta consideração tão idiota.
Na verdade, concordo com capataz. O que iguala os seres de uma mesma espécie não são o equilíbrio das qualidades. Mas a morte, que vem para os felizes e os infelizes, para os pobres e os ricos.
3:48 PM